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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Mandala de corpos

Na Escola do Sítio (lugar onde trabalhei e onde este projeto foi realizado em 2013), o ano letivo começa com a escolha e a apresentação do objeto disparador. O professor de cada turma (do 1º ao 5º ano) seleciona um objeto pensando e considerando as possibilidades que o mesmo poderá oferecer para o trabalho com seu grupo de crianças. Esta é, também, uma escolha imbuída de subjetividade, expectativas e objetivos concretos.   Quando a turma conhece o objeto que os acompanhará durante todo o ano, os alunos começam a levantar possíveis estudos (rede de ideias), fazem relações com outros temas, investigam a sua história, etc. 
O objeto disparador é aquele que lança nosso trabalho como flecha no horizonte e saímos correndo atrás, em busca de perguntas, novos caminhos, um jeito diferente de conhecer o mundo, suas coisas e pessoas. 


É assim que tudo começa! 
O estudo da simetria iniciou então com o caleidoscópio, o objeto disparador da turma do 3º ano de 2013, e se bifurcou por “ruas e avenidas” do nosso tempo escolar.
Duas cabeças, de Alex Flemming
Ao observar as imagens produzidas pelo curioso brinquedo, as crianças perceberam que os espelhos faziam essas imagens se multiplicarem igualmente, que havia simetria. Descobriram também que as mandalas eram inspiradas nos caleidoscópios e até viravam estampas para tecidos. Diante de tantas perguntas e descobertas, iniciamos um estudo sobre a simetria das mandalas, no qual pudemos perceber que também há simetria em outras coisas: nas folhas, flores, animais, formas geométricas, obras de arte, etc. Essa observação foi feita em nossas rodas da conversa ou em propostas mais específicas, como por exemplo, quando conhecemos a obra de Alex Flemming intitulada de “Duas cabeças”. Também pudemos explorar a simetria no casco da tartaruga trazida por uma aluna para passar o dia na escola!

Uma das opções, dentro deste trabalho, foi explorar a simetria que há em nosso corpo, aproveitando os desenhos (representações humanas) que as crianças de 8 e 9 anos fazem. Algumas já tentam ser fiéis aos detalhes, garantindo todas as partes do corpo, mas outras ainda utilizam “homens palitos”. 
Iniciamos com uma conversa sobre as partes do corpo e a distribuição harmoniosa de cada uma delas. Traçamos uma linha imaginária que cortava, da cabeça ao final do tronco, e as crianças comentavam: cada braço de um lado, olhos, orelhas, pés também; cinco dedos da mão de um lado e outros cinco do outro, da mesma forma que os dedos do pé. E o que temos unitariamente (como nariz, boca, etc.), ficaria cortado ao meio pela linha que imaginamos.

Em duplas, as crianças se desenharam em tamanho real, na tentativa de buscar um contorno próximo ao exato. Foi difícil conseguir: alguns alunos se mexiam e a forma ficava estranha, ou quem estava fazendo o contorno não riscava próximo ao corpo e, esse fato, dava uma proporção não “real” ao que estava sendo feito. O dono do corpo não ficava satisfeito com suas formas e pedia um novo desenho. Depois de tudo pronto, finalizaram o traço com canetinha grossa e recortaram.


Corpo, simetria e diversidade
O próximo passo seria pintar esse corpo, mas... como chegaríamos a cor da pele de cada um? Para isso usamos tinta guache nas cores azul, vermelho, branco, preto e amarelo. Tivemos uma longa conversa: “que mistura faremos para pintar a nossa cor?”. Percebemos que em nosso grupo há diversas tonalidades e que, chegar ao tom perfeito de cada um, não seria nada fácil. Então, as crianças misturaram as tintas e chegaram aos tons de pele mais rosados e foram conferindo quem tinha aquele tom (pintaram manchas nas mãos). Depois, misturaram outros tons mais voltados para o marrom e acrescentavam branco quando necessário. Dessa forma, cada um foi buscando a sua cor e pintando seu corpo. 
Ouvíamos as crianças levantarem hipóteses: quais crianças teriam a mesma? Por que outras não teriam? E assim, davam as sugestões para que as misturas de tinta se aproximassem mais às cores de cada pele. Um aluno insistia que a sua cor não era nenhuma daquelas misturas, dizia que sua cor era branca. Então, oferecemos o pote de tinta branca para que conferisse se aquela era realmente a sua cor. E ele nos respondeu: “Não sou dessa cor também, sou branco!”. E após conversas e experimentações com a tinta, o aluno chegou à conclusão que as pessoas dizem ser brancas, mas na verdade não são. 
Para algumas crianças, falar sobre a cor da sua pele não é algo tão simples assim. Já para outras, a mistura virou uma gostosa brincadeira, como por exemplo, uma aluna que disse: “Coloca marrom no meu que eu sou escurinha!”; ou esse outro menino: “O meu tom está muito claro, põe mais marrom porque a minha mãe diz que eu estou sempre sujo”. Porém, uma criança da turma, que tem o tom de marrom mais escuro, resolveu não fazer as misturas e ficou esperando sobrar algum copinho com qualquer tom de pele para se pintar. Percebemos que seu corpo no papel havia ficado quase vermelho escuro. Ela não se sentiu satisfeita e estava incomodada com aquela cor, por isso, descartamos aquele trabalho e ela começou tudo outra vez. Mas primeiro ela resolveu fazer todos os detalhe: pintou a sua roupa, sapatos, cabelo, traços do rosto e deixou por último, a cor da pele. Quando já estava tudo pronto, a aluna solicitou a minha ajuda para fazermos juntas a mistura que representasse o tom da sua pele. Nesta etapa do trabalho as crianças se reconheceram como diferentes e semelhantes – etnias e cores.
Os corpos ficaram em um grande varal e aquela imagem incomodou um pouco alguns alunos. Até disseram que nossa sala estava parecendo um açougue! E ali eles secaram e esperaram a próxima etapa do trabalho...

... que foi desenhar o rosto usando o espelho para ajudá-los a compor os detalhes. Era como se o espelho confirmasse aquilo que eles buscavam: qual é a cor do meu cabelo? E o formato dos meus olhos? Meus dentes aparecem no meu sorriso? As crianças também desenharam e pintaram suas roupas, sapatos e outros detalhes que achassem interessantes. E novamente esses corpos descansaram e secaram nos varais.
E agora, o que faríamos com todas essas representações? Oras, uma mandala! A turma já havia feito um trabalho com a professora de Ed. Física (mandalas humanas), porém utilizaram seus próprios corpos. Saímos à procura de um espaço possível para colar essa grande exposição humana e escolhemos um lugar muito movimentado, perto do refeitório.

Chegou o dia de compor a nossa mandala e fizemos uma roda especial para levantar os critérios de organização dos corpos no desenho circular. Aproveitamos o assunto das medidas e preenchemos uma tabela com a altura de cada criança (em metros e centímetros). Depois, organizamos nossos dados da menor para a maior altura. Já no espaço onde seriam expostas as mandalas, os alunos retomaram a conversa da roda e elegeram uma composição simétrica, fazendo equivalências das medidas das alturas, aproximando e combinando as informações.
Tudo organizado! Só faltava encher esses corpos de fita adesiva e colar em nossa parede amarela! Depois de pronto, era só posar para foto e apreciar esse longo, mas muito bonito, trabalho.

Mandalas para Todos
Com destaque, nossas mandalas instigaram os olhos de quem passava perto delas. Pudemos escutar as perguntas das crianças da Educação Infantil, por exemplo: “O que é?”; “Por que estão aí?”; “Tem um cabelo amarelo igual ao meu!”, durante a hora do almoço e as inúmeras visitas rápidas que transitavam pelo refeitório da escola. Ou, simplesmente, era possível ver as pessoas passarem, pararem e apreciarem continuando seus caminhos logo em seguida. As crianças ficaram orgulhosas ao receberem tantos “parabéns” de colegas de outras turmas e dos funcionários.



Créditos da Postagem

* Este trabalho teve a colaboração da professora auxiliar Natalí Faria.

* Escola do Sítio
Endereço: Rua Uirapuru, 820. CEP: 13082-706- Campinas – SP
Tel: (19) 3289-6433



sexta-feira, 18 de maio de 2012

Muito prazer: meu nome é "pré-silábico"

Esse texto eu escrevi no final do ano de 2009, quando ainda trabalhava na rede estadual de ensino. Eu era Professora Coordenadora da Oficina Pedagógica da Diretoria Campinas Leste, e trabalhava com formação de professores-coordenadores, acompanhando algumas escolas, fazendo visitas, entre outras funções.
Em uma das nossas visitas nas salas de PIC (Projeto Intensivo de Ciclo - que tem como objetivo "recuperar" crianças que tiveram dificuldades na alfabetização durante o Ciclo I), eu e minha companheira de luta, Angélica Ancona, estivemos numa sala onde essa situação realmente aconteceu.
Tentei escrever o texto na perspectiva da criança...

Por que publicar só agora? Eu nem tinha mais esse arquivo! Mas uma amiga me contou ontem, que estava numa formação de professores em uma cidade vizinha e a formadora leu o meu texto. Caramba! Fiquei surpresa!! E é bem o que meu marido disse: "Agora o texto não é mais seu, é do mundo".
Então, seja bem vindo ao mundo! Lá vai...


Muito prazer: meu nome é “pré-silábico”

                “Esse menino aqui é o pré-silábico”. Foi assim que a minha professora me apresentou para duas mulheres que apareceram na nossa classe hoje. Não sei se a minha professora já esqueceu o meu nome pois, sempre que entra visita na sala, é dessa forma que ela me chama. Eu também, não tenho ideia do que esse nome significa, mas sei que não é coisa boa. Pode ser um palavrão? Talvez... só sei que depois que me deram esse outro nome, não consigo escrever mais nenhuma palavra sem chorar depois.

                A cada letra um choro mansinho... e como a tristeza de ter que mudar de nome é grande, vou colocando um tanto de letras sem medida, sem pensar em nada. Vou emendando com o choro que não consegue ser controlado.

                A professora diz que não tem mais jeito. Acho que porque sou criança, pobre e ainda por cima “pretinho”. Ela até mandou eu fazer uns exames na doutora. A doutora mandou um papel, que a professora mostrou para essas mulheres que entraram na minha sala de aula hoje. Não sei o que tem escrito nesse papel, talvez além de ser tudo isso que acabei de falar, a professora ache que eu tenho alguma doença, que não me deixa escrever as letras direito. Deve ser o nome da doença: “pré-silábica”. Pronto, agora sou uma criança, pobre, pretinha, doente e pré-silábica.

                Essas mulheres, que vieram visitar a nossa sala hoje, disseram ser “professoras de ensino”. Um colega perguntou para que série davam aula, mas elas disseram que não tem classe e que trabalham numa tal diretoria... como assim professora sem aluno? Que confusão, mas nem vou tentar entender.

                Depois que a professora conversou um monte com essas mulheres, uma delas me chamou. Fiquei com medo: o que ela faria comigo? Seria algum exame? Me mandaria escrever? Ah, não! Não conseguiria segurar o choro que vem junto com as letras.

                Era uma folha de papel verde grande e ali caberia um monte de letras e um tanto de choro. Mas, aquela mulher conversou baixinho comigo, se interessou pelas coisas que eu gosto de fazer. Pela primeira vez senti vontade de escrever! A minha professora ficava, às vezes, por perto e eu sentia um frio que subia debaixo da carteira... Quando a professora ficava longe esse frio passava, e um calorzinho esquentava minha mão e meus pensamentos.

                Eu tinha que escrever uma lista das minhas brincadeiras preferidas. Ah, isso era bem fácil. Coloquei a primeira letra. O choro não veio. Escrevi a segunda e nada de choro outra vez. Acho que estou ficando bom. A cada letra que eu escrevia, aquela mulher me encorajava a colocar a próxima e eu, pela primeira vez, consegui ouvir o som das letras, pude ouvir o som da minha própria voz dizendo baixinho que letra eu deveria colocar.

                A professora veio voltando e falando com aquele vozeirão um monte de “MA, M A, MA, M M M AAAA”. Que boca enorme ela tem. Meu pensamento ficou confuso, eu já não podia mais ouvir a minha voz. Aquela mulher que estava comigo pediu que a professora não falasse mais e que nos deixasse fazer sozinhos. A professora saiu e voltei a ouvir a minha própria voz.

                Escrevi as brincadeiras preferidas, e li toda a lista para a mulher do papel grande e verde. Ela me beijou e ficou feliz ao ver minhas palavras escritas. E, eu ouvi bem ela dizer para professora, que não sou nada desse tal de pré-silábico. Será que eu me curei da doença daquele papel da doutora?

                Fui para a minha carteira. E agora? Se eu não sou mais quem eu sou, e nem mesmo esse negócio de pré-silábico – esse nome novo que a professora me deu – quem eu sou? O choro voltou outra vez, agora sem letras. Porém, aquela mulher veio outra vez e disse para eu não chorar, que eu era um menino muito sabido.

                Elas já estavam indo embora, quando lançaram um desafio para o meu amigo: escrever a palavra “apontador” na lousa. Eu sento na primeira carteira, bem pertinho da lousa e acompanhei tudo atentamente. A mulher pediu para o colega escrever apontador e ele escreveu de giz branco “atado”. A menina mais inteligente da sala não aceitou a escrita dele e foi na lousa arrumar as letras e ficou assim: “apãontador”. A turma vibrou e disse que estava certo (claro, a professora adora aquela menina!), mas as mulheres continuavam a perguntar, tinha alguma coisa errada. Eu fiquei bem atento ao que elas falavam, e percebi que tinha letra trocada ali. Tomei coragem, pedi o giz... a professora me olhou torto. Eu continuei mesmo assim! Apaguei com a mão a letra “a” e a letra “o”. As mulheres vibravam e falavam “vai, vai”. Meus colegas duvidavam de mim “vai errar, vai errar” e a minha professora olhava espantada. Depois de apagar as letras, escrevi bem bonito só a letra “o” e ficou assim: APONTADOR. Foi a maior alegria! O calor tomou conta de todo meu corpo e a mulher me abraçou.

                Voltei para a minha primeira carteira e ouvi minha professora dizer para a menina mais inteligente: “Nossa, você me decepcionou”. Engraçado, a professora não falou nada para mim! Mesmo assim não deixei de ficar feliz!

Lívia Pinheiro