sexta-feira, 18 de maio de 2012

Muito prazer: meu nome é "pré-silábico"

Esse texto eu escrevi no final do ano de 2009, quando ainda trabalhava na rede estadual de ensino. Eu era Professora Coordenadora da Oficina Pedagógica da Diretoria Campinas Leste, e trabalhava com formação de professores-coordenadores, acompanhando algumas escolas, fazendo visitas, entre outras funções.
Em uma das nossas visitas nas salas de PIC (Projeto Intensivo de Ciclo - que tem como objetivo "recuperar" crianças que tiveram dificuldades na alfabetização durante o Ciclo I), eu e minha companheira de luta, Angélica Ancona, estivemos numa sala onde essa situação realmente aconteceu.
Tentei escrever o texto na perspectiva da criança...

Por que publicar só agora? Eu nem tinha mais esse arquivo! Mas uma amiga me contou ontem, que estava numa formação de professores em uma cidade vizinha e a formadora leu o meu texto. Caramba! Fiquei surpresa!! E é bem o que meu marido disse: "Agora o texto não é mais seu, é do mundo".
Então, seja bem vindo ao mundo! Lá vai...


Muito prazer: meu nome é “pré-silábico”

                “Esse menino aqui é o pré-silábico”. Foi assim que a minha professora me apresentou para duas mulheres que apareceram na nossa classe hoje. Não sei se a minha professora já esqueceu o meu nome pois, sempre que entra visita na sala, é dessa forma que ela me chama. Eu também, não tenho ideia do que esse nome significa, mas sei que não é coisa boa. Pode ser um palavrão? Talvez... só sei que depois que me deram esse outro nome, não consigo escrever mais nenhuma palavra sem chorar depois.

                A cada letra um choro mansinho... e como a tristeza de ter que mudar de nome é grande, vou colocando um tanto de letras sem medida, sem pensar em nada. Vou emendando com o choro que não consegue ser controlado.

                A professora diz que não tem mais jeito. Acho que porque sou criança, pobre e ainda por cima “pretinho”. Ela até mandou eu fazer uns exames na doutora. A doutora mandou um papel, que a professora mostrou para essas mulheres que entraram na minha sala de aula hoje. Não sei o que tem escrito nesse papel, talvez além de ser tudo isso que acabei de falar, a professora ache que eu tenho alguma doença, que não me deixa escrever as letras direito. Deve ser o nome da doença: “pré-silábica”. Pronto, agora sou uma criança, pobre, pretinha, doente e pré-silábica.

                Essas mulheres, que vieram visitar a nossa sala hoje, disseram ser “professoras de ensino”. Um colega perguntou para que série davam aula, mas elas disseram que não tem classe e que trabalham numa tal diretoria... como assim professora sem aluno? Que confusão, mas nem vou tentar entender.

                Depois que a professora conversou um monte com essas mulheres, uma delas me chamou. Fiquei com medo: o que ela faria comigo? Seria algum exame? Me mandaria escrever? Ah, não! Não conseguiria segurar o choro que vem junto com as letras.

                Era uma folha de papel verde grande e ali caberia um monte de letras e um tanto de choro. Mas, aquela mulher conversou baixinho comigo, se interessou pelas coisas que eu gosto de fazer. Pela primeira vez senti vontade de escrever! A minha professora ficava, às vezes, por perto e eu sentia um frio que subia debaixo da carteira... Quando a professora ficava longe esse frio passava, e um calorzinho esquentava minha mão e meus pensamentos.

                Eu tinha que escrever uma lista das minhas brincadeiras preferidas. Ah, isso era bem fácil. Coloquei a primeira letra. O choro não veio. Escrevi a segunda e nada de choro outra vez. Acho que estou ficando bom. A cada letra que eu escrevia, aquela mulher me encorajava a colocar a próxima e eu, pela primeira vez, consegui ouvir o som das letras, pude ouvir o som da minha própria voz dizendo baixinho que letra eu deveria colocar.

                A professora veio voltando e falando com aquele vozeirão um monte de “MA, M A, MA, M M M AAAA”. Que boca enorme ela tem. Meu pensamento ficou confuso, eu já não podia mais ouvir a minha voz. Aquela mulher que estava comigo pediu que a professora não falasse mais e que nos deixasse fazer sozinhos. A professora saiu e voltei a ouvir a minha própria voz.

                Escrevi as brincadeiras preferidas, e li toda a lista para a mulher do papel grande e verde. Ela me beijou e ficou feliz ao ver minhas palavras escritas. E, eu ouvi bem ela dizer para professora, que não sou nada desse tal de pré-silábico. Será que eu me curei da doença daquele papel da doutora?

                Fui para a minha carteira. E agora? Se eu não sou mais quem eu sou, e nem mesmo esse negócio de pré-silábico – esse nome novo que a professora me deu – quem eu sou? O choro voltou outra vez, agora sem letras. Porém, aquela mulher veio outra vez e disse para eu não chorar, que eu era um menino muito sabido.

                Elas já estavam indo embora, quando lançaram um desafio para o meu amigo: escrever a palavra “apontador” na lousa. Eu sento na primeira carteira, bem pertinho da lousa e acompanhei tudo atentamente. A mulher pediu para o colega escrever apontador e ele escreveu de giz branco “atado”. A menina mais inteligente da sala não aceitou a escrita dele e foi na lousa arrumar as letras e ficou assim: “apãontador”. A turma vibrou e disse que estava certo (claro, a professora adora aquela menina!), mas as mulheres continuavam a perguntar, tinha alguma coisa errada. Eu fiquei bem atento ao que elas falavam, e percebi que tinha letra trocada ali. Tomei coragem, pedi o giz... a professora me olhou torto. Eu continuei mesmo assim! Apaguei com a mão a letra “a” e a letra “o”. As mulheres vibravam e falavam “vai, vai”. Meus colegas duvidavam de mim “vai errar, vai errar” e a minha professora olhava espantada. Depois de apagar as letras, escrevi bem bonito só a letra “o” e ficou assim: APONTADOR. Foi a maior alegria! O calor tomou conta de todo meu corpo e a mulher me abraçou.

                Voltei para a minha primeira carteira e ouvi minha professora dizer para a menina mais inteligente: “Nossa, você me decepcionou”. Engraçado, a professora não falou nada para mim! Mesmo assim não deixei de ficar feliz!

Lívia Pinheiro

8 comentários:

  1. Adorei o texto! Esse texto foi lido na escola onde dou aulas num HTPC.

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    1. Obrigada Vanessa! É engraçado ver como as palavras e as ideias podem "caminhar" por aí!
      Um abraço

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  2. Oi Lívia, td bem?
    Quanto tempo não nos falamos mais né... vi o link do seu blog no face e vim conhecer seu cantinho, li alguns poucos textos e me encantei com este, lindo e delicado além de nos fazer pensar como professor que muitas vezes o problema não é do aluno mas sim do próprio professor. Com certeza um texto que deve ser dividido pelo mundo.
    Parabéns pelo trabalho e também pelos filhos lindos que você tem, vi que você está esperado uma menina Helena, parabéns pela família.

    bjos

    Maysa

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    1. Obrigada Maysa, olha quanto tempo levei para responder! Tive mudanças no blog e acabei não vendo essas mensagens!
      Um beijo grande!

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  3. Oi Lívia, td bem?
    Adorei seu texto e claro vou ler em ATPC...Muito bom...Parabéns!!! Bjss

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  4. Adorei o texto Lívia!
    Sou orientadora de estudo do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) e irei usar o seu texto em uma das minha formações.
    Parabéns!!!

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  5. Olá Livia!
    Adorei o seu texto, parabéns!
    Sou orientadora de estudos em São Bernardo do Campo, do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) vou ler o seu texto para os professores alfabetizadores na nossa próxima formação.

    Um abraço

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    1. Obrigada Regina, que bom que gostou!
      Espero que essa história fique ajude na reflexão do seu grupo de professores!
      Um abraço agradecido

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